DIREITO TRIBUTÁRIO
A falácia dos três pilares da reforma tributária
Kiyoshi Harada
Os autores da reforma tributária, que fundiram o IPI, o PIS/COFINS, o ICMS e o ISS no IBS dual e na CBS federal, partiram da premissa de que a fusão de tributos de competências impositivas diferentes se assentava em três pilares: simplicidade tributária; neutralidade fiscal e eficiência tributária.
O primeiro pilar, simplicidade tributária, foi martelado dia e noite na cabeça da população em geral pela grande mídia “estatizada”.
Essa mídia foi decisiva para ganhar a simpatia da sociedade leiga, que ignora o fato de que não se pode unificar tributos de competência diferentes, sem destruir a forma federativa do Estado Brasileiro, que assegura autonomia político-administrativa aos três entes da Federação, por meio de impostos privativos discriminados nos arts. 153 (federal), 155 (estadual) e 156 (municipal) de Constituição Federal de 1988.
Nenhum dos três pilares anunciados foi atingido. Vejamos:
Simplicidade – Em geral pode-se dizer que simplicidade é a maneira de descomplicar as coisas, expressando o pensamento com clareza e objetividade, eliminado os excessos inúteis e desnecessários. Ela se manifesta na comunicação, na escrita, no estilo de vida do dia a dia e até mesmo na natureza em que a beleza se encontra de forma natural.
Logo, simplicidade tributária é a maneira de tornar o sistema tributário mais fácil de entender, administrar e dar é cumprimento. Envolve necessariamente a redução de normas da legislação tributária, a unificação de tributos, quando for possível, e a facilitação do cálculo e pagamento de tributos. Não tem sentido, por exemplo, o PIS/COFINS com duas legislações diferentes tanto na modalidade de incidência cumulativa, como na incidência não cumulativa. Deveria optar por um dos regimes. Igualmente não faz sentido destacar uma parte do Imposto de Renda para criar a CSLL.
Não se resume a simplificação tributária na reunião de tributos contra a forma federativa de Estado, que atribui impostos privativos a cada ente da Federação como fez a reforma tributária sob comento. A multiplicidade de tributos, por si só, não atenta contra o princípio da simplicidade. Ela existe para distribuir a carga tributária para os diferentes segmentos da sociedade. Por que um advogado, um médico, um engenheiro, um juiz, um promotor público tem que pagar o IPI ou o ICMS? O único imposto universal que temos é o imposto de renda, pelo que é incompatível com o regime desse imposto as diferentes isenções. Todas as pessoas, físicas e jurídicas devem pagar o imposto de renda nos limites de sua capacidade contributiva. O rico, paga mais e o pobre, paga menos, mas, paga. Onde todos pagam, todos pagam menos!
A Emenda Constitucional nº 132/2013, que promoveu a reforma tributária parcial unificando os tributos incidentes sobre o consumo, contém 491 normas, ao passo que o Regulamento do IBS/CBS/IS, aprovado pela Lei Complementar nº 214/2025, contém 542 artigos que se desdobram em parágrafos, incisos e alíneas formando um conjunto de quase 1.000 normas. Parece um manicômio jurídico-tributário.
Onde a simplicidade do sistema tributário?
Neutralidade fiscal – A neutralidade fiscal se insere no campo da política tributária eleita pelo governo, de sorte a estabelecer que os impostos causem o mínimo de distorção possível nas decisões econômicas das fontes produtoras de riquezas.
Em outras palavras, o peso da carga tributária não deve influenciar na escolha do consumo, do investimento, ou da alocação de recursos.
Para tanto, o sistema tributário não deve favorecer ou prejudicar setores específicos, devendo manter o princípio da livre concorrência.
Ora, a reforma tributária sob comento mantém a redução da alíquota-padrão de 26,5% em 30%, 50% e 60% causando distorções na demanda, direcionando os consumidores de produtos e de serviços. Só para ilustrar, no setor de saúde e remédios há centenas de produtos favorecidos por diferentes reduções, direcionando a escolha dos consumidores. São tantos os medicamentos contemplados com reduções ou isenções, por força do lobb junto aos parlamentares que foi preciso fazer um Anexo no Regulamento para identificar esses benefícios fiscais casuísticos e ilegítimos, para dizer o menos.
A neutralidade fiscal é absolutamente incompatível com os diferentes incentivos fiscais como isenção e redução de alíquotas e das bases de cálculo, com exceção daqueles voltados para a redução de desigualdades socioeconômicas entre as várias regiões, do país, como os estados localizados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que são pobres se comparados com os estados situados nas Regiões Sul e Sudeste.
Eficiência tributária – Significa eleição de política fiscal que busca maximizar a arrecadação tributária com o menor custo arrecadatório possível, e minimizando ao máximo a carga tributária tanto para o ente político tributante, como para o contribuinte. Esse princípio articula-se com os princípios da simplicidade e da neutralidade fiscal.
Ora, a reforma tributária sob análise criou o Comitê Gestor, uma autarquia federal que executa funções típicas de Estado como se fosse um quarto poder de República (arrecada e distribui o IBS aos estados e municípios e julga em última instância administrativa os processos tributários).
Para desempenho dessas atribuições o Comitê Gestor cobra 60% da arrecadação do IBS de 2026, e 50% da arrecadação nos exercícios subsequentes.
Em relação aos contribuintes criou-se um caos legislativo com a produção de uma burocracia infernal em escala industrial.
O quadro atual, com certeza, será agravado com a elaboração de outras normas dotadas de sadismo burocrático, pois o Comitê Gestor ganhou o poder normativo e o poder de interpretar as normas que ele vier a elaborar.
Onde a eficiência tributária?
Essa reforma tributária, que destrói o único sistema tributário esculpido pela Constituição de 1988 e compatível com a peculiaridade da Federação Brasileira, foi um grande embuste do começo ao fim, com a ajuda da despudorada mídia “estatizada”, que foi decisiva na arte de enganar a população leiga.
Os autores da Regulamentação, de forma cínica, embutiram uma trava de 26,5% na alíquota do IBS, dispondo que na eventualidade dessa alíquota vir a ser superada em 2033, quando os estados e municípios fixarem as suas respectivas alíquotas, o governo irá enviar ao Congresso Nacional projeto legislativo para reconduzir a carga tributária ao patamar de 26,5%.
Ora, é questão matemática! Se somarem à alíquota-padrão de 26,5% às alíquotas estaduais e municipais é claro que essa alíquota-padrão irá se elevar, descabendo especular com a hipótese eventual. Ou eles são doidos, ou eles pensam que a população é burra!
Enfim, a reforma tributária implantada pela EC nº 132/2023 e regulamentada pela LC nº 214/2025 atropelou os três pilares anunciados enfaticamente na exposição de motivos subscrita por seus autores, jejunos em direito e despidos de bom-senso.
Além da quebra a Federação Brasileira os aloprados autores da reforma conseguiram criar um imposto onde participam vários autores: A União cria o IBS, mas não tem o poder de fiscalizar e de arrecadar; os municípios criam as alíquotas do IBS e fiscalizam o imposto, impondo autos de infração, mas não podem julgar os processos administrativos resultantes dos autos que lavrarem, nem arrecadar o IBS. Finalmente, o Comitê Gestor, que não tem o poder de criar o imposto nem de fiscalizar, arrecada e distribui o imposto entre estados e municípios.
Temos a impressão que esses autores amalucados se inspiraram nas olimpíadas, onde vários atletas se revezam na tarefa de conduzir a tocha.
* Texto publicado no Migalhas, edição nº 6.032, com ligeira adaptação.
** Kiyoshi Harada – Com mais de 50 anos de experiência, dr. Kiyoshi Harada é um dos nomes mais conceituados em Direito Tributário e Direito Financeiro na América Latina. É autor de inúmeras obras jurídicas e professor de Direito Administrativo, Tributário e Financeiro em diversas instituições de ensino superior. Especialista em Direito Tributário e Ciência das Finanças, é Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo